Tuesday, December 05, 2006

SÍNDROME DAS MARIAS

João Paulo Medeiros


Havia mais de cinco meses que mantinha rigorosamente o mesmo suplício: logo depois do clarear do dia suco de três laranjas, sem açúcar, acompanhado de um ou dois pães integrais melados de manteiga de igual procedência. À tarde, alface, brócolis e arroz branco misturado com migalhas de carne de frango resseca pela nocividade do microondas. Por fim, sopa de legumes e verduras magras bem aquecida para amenizar o frio da noite e da barriga.

Em tempos de Fome Zero e Bolsa Família era privilegiada. Embora sentisse fome e de quando e vez escuridão na vista, comida e dinheiro não lhe faltavam. Na última visita que fizera ao médico, voltou para casa com os nervos à flor da pele quando este lhe disse que de nada adiantaria tanto esforço, porque provavelmente tratava-se de um problema genético – mais três quilos lhe foram acrescidos nas duas semanas anteriores.

“Mas como assim problema”, replicou enfurecida. Tudo o que fazia apenas não ajudaria a manter intacta sua estética de menina? Empurrava uma vida moldada por ilusões, hábitos e cláusulas por querer próprio.

Ao abrir a janela de seu quarto, ignorava com maestria os docinhos e salgados apetitosos da Padaria Onófrio, bem em frente a sua casa. Toda às tardes e noites servia-se do quarto enquanto pais e seus dois irmãos deliciavam-se do cardápio e da cozinha espaçosa. Dedicava horas e horas frente ao espelho registrando cada detalhe e mudanças ocorridas em seu corpo; dava especial atenção às pernas e quadris desengonçados e cheios de ossos, também olhava para a barriga volumosa, e não queria perceber que seus 70 quilos seguiam o padrão da riqueza nacional: abundantes e mal distribuídos em míseros 1.65m de altura. Jamais dispensava uma única oportunidade de verificar a eficiência de qualquer balança farmacêutica que encontrasse. Certas vezes receava a crueldade de alguns balconistas indiscretos, mas não resistia.

Numa dessas ocasiões, escutou de um deles: - Se balança falasse, essa aí já estaria aos gritos! O sangue torrou-lhe os juízos naquele instante. Sorte a dele que nenhum vasilhame de xarope havia por perto. Passada a raiva momentânea, pouco importava o que pensassem ou dissessem a seu respeito. Pois todo Narciso ama e cuida com zelo de sua beleza incontroversa. E mais ela, uma Maria brasileira... Filha do botox e do corretivo, escrava do desejo de prosseguir arranhando o céu da perfeição; ainda que o mundo e os números denunciem o contrário.

Dia desses, candidatou-se à garota carnaval...

3 Comments:

At 4:27 AM, Blogger Márcio S. Sobrinho said...

valew, jp! boa crônica!
gostei da parte: "...seguiam o padrão da riqueza nacional: abundantes e mal distribuídos..." :) ótima sacada!

 
At 6:14 AM, Blogger Gilberto Silva said...

Boa João!!!

 
At 5:05 AM, Blogger Lenildo Ferreira said...

Muito bem, Cony. Sou teu fã... me dá um autógrafo?

 

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