Thursday, December 21, 2006


Uma doença chamada Miséria
João Paulo Medeiros

Se o mundo fosse um humano, certamente estaria há tempos em risco de vida. E o pior: caso residisse aqui no Brasil, estaria aguardando pela gigantesca fila da UTI. Porque a depender de médicos com boa vontade em socorrê-lo...

Estima-se que 3 bilhões de pessoas estão neste momento vivendo com menos de 2 dólares por dia. O dado foi publicado num estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em termos menos pragmáticos, metade da população mundial se encontra abaixo da Linha da Pobreza; um dos conceitos mais utilizados para definir quem não tem renda suficiente para preencher a panela com alguma coisa que se conduza à boca.

Números absurdos, de uma realidade indescritível.

Talvez seja essa a mais terrível das patologias. A fome, a exclusão do resto da sociedade economicamente ativa, o desespero por uma vida miserável transformam a criatura humana num animal selvagem na luta pela sobrevivência. Independentemente de nacionalidade, credo religioso, descendência ou particularidades psicológicas.

Infelizmente, lá fora os brasileiros também são conhecidos pela sua disciplina nesse quesito. Tanto quanto somos lembrados pelo futebol, pela nossa destreza com o samba, ou mais ainda como artífices da corrupção e do jeitinho brasileiro. Aqui 42,570 milhões passam fome ou não têm as condições necessárias para administrar a vida dignamente, escancarou aos olhos de todos a Fundação Getúlio Vargas.

As imagens que serão exibidas a seguir estão longe de representarem à risca a verdadeira aberração humana dos dias atuais. Foram produzidas por um grupo de universitários desconhecidos, talvez até pouco sensíveis à causa; semelhante ao que ocorre com uma grande quantidade de cabeças ociosas que engrossam as academias brasileiras.

Mas elas podem e devem fazer com que pensemos em nossa própria inatividade perante o problema.

Oxalá fôssemos todos cirurgiões, a madrugar nas ruas pela efetivação dos direitos individuais de cada um dos que estão “enfermos”. Dos oprimidos e injustiçados. Daqueles que, nem ao menos, por muitas vezes, se reconhecem e são reconhecidos como gente.

Tuesday, December 19, 2006


















Chifre em cabeça de cavalo

João Paulo Medeiros


A política brasileira é marcada, infelizmente, por episódios e declarações no mínimo controvertidas – para não dizer inimagináveis. Dia desses, logo após o “super-extraordinário” aumento de salários conferido aos deputados (91%), um parlamentar teve a ousadia de defender a medida dizendo que “é preciso dar aos homens dignos desse país as condições de trabalharem decentemente”. Noutro caso, passadas poucas horas das eleições de Outubro, um recém-eleito não conservou a vergonha e assegurou que a primeira coisa a fazer no Congresso “é observar e mudar todos os móveis da Casa”.

Ontem, durante um fervoroso discurso no Plenário do Senado Federal, o senador Antônio Carlos Magalhães utilizou-se de todo o descaramento para tecer críticas ao comprometimento da Mídia brasileira com os políticos do país.

Evidentemente que a questão aqui não é a necessidade de reavaliação do tema, visto que as reflexões precisam ser cultivadas com freqüência por qualquer um que tenha o mínimo de conhecimento do assunto. Pois os problemas existem, e são muitos! Disso ninguém tem dúvida.

As declarações do senador foram motivadas pela publicação de uma matéria, na IstoÉ desta semana, intitulada “O fim do Carlismo”. Mas ao referir-se ao tema, ACM foi bem mais além.

No pronunciamento o parlamentar enfatizou o “estreito” relacionamento entre a Revista e o grupo político comandado pelo PT, assim como a interferência política existente dentro de outras empresas de comunicação. “O Brasil agora é este”, disse. “Essa imprensa – não todos; a maioria é gente séria – tem lucrado muito com o governo”, completou.

Mas as palavras saídas da boca do senador ACM ganham outras configurações e sentidos. Certamente não têm nenhum compromisso com o processo de democratização dos meios de comunicação brasileiros, muito menos com a livre manifestação do pensamento em favor dos oprimidos. Impossível que isso acontecesse, se o mesmo ACM é indiscutivelmente um dos grandes responsáveis pela atual moléstia.

Um breve resgate da história do processo de submissão dos meios de comunicação à classe política nacional, e a homilia “Carlistiana” revela-se incongruente e arraigada de demagogias.

Se olhasse para as fotografias tiradas nos anos de 1985 a 1989, quando foi ministro do Governo Sarney, ACM certamente viria que ele mesmo foi um dos maiores protagonistas de uma enxurrada de concessões e favorecimentos políticos a grupos de comunicação em todo o Brasil.

Para se ter uma noção do que significou a passagem de ACM pelo Ministério das Comunicações, em seis anos do Governo Figueiredo foram concedidas 634 novas emissoras de rádio e TV. Nos anos em que esteve à frente da pasta ministerial, ACM outorgou 1.028 concessões. Destas a grande maioria foi destinada a aliados políticos de Sarney e a homens de confiança de senador na Bahia, segundo revela um estudo do jornalista e pesquisador Paulino Motter.

Agora, depois de ter contribuído diretamente para o aliciamento dos veículos de comunicação por entidades político-partidárias, ACM parece pretender esquecer ou fazer esquecer o passado; figurando como defensor da moralidade e da independência jornalística nacional.

É bom que os arquivos do Ministério das Comunicações continuem falando àqueles que, às vezes, não querem ouvir... Discursos e melodramas dessa natureza, só podem conduzir ao teatro cavalos com chifres e/ou elefantes farejadores.

Monday, December 11, 2006























Vai reformar o quê?

João Paulo Medeiros

Muito se tem falado em reforma política nesse país do ano passado até agora. As crises políticas e os vários episódios de corrupção aflorados nos últimos dois Governos têm contribuído para isso.

Mas na verdade pouco foi feito ou mesmo se sabe que frutos poderão ser deixados por essa tal “Reforma”. Juntando tudo o que foi sugerido até hoje, provavelmente conseguiríamos efetuar uma quase-meia ou mini-reforma. Reforma pra valer, nada.

Dentre as propostas elencadas por essa histeria de micro-pensamentos, há uma que sem dúvidas extrapolou os limites da aceitabilidade pública. O projeto que torna as campanhas objeto de financiamento público é, e certamente será, mais uma facada no bolso dos 180 milhões de brasileiros. Ele, inclusive, já encontrou muitos defensores. Diversos artistas, intelectuais e homens públicos dignos esbravejam em favor da idéia. Talvez até entregues à máxima: “a não fazerem nada, que qualquer coisa façam...”.

Digo que “certamente será” aprovado porque poucas foram as ocasiões onde se viu tanto descaramento e más intenções numa só idéia e, conhecendo a classe política desse país, é fácil imaginar qual será o veredicto.

Vejamos resumidamente a propositura:

1. As campanhas passarão a ser patrocinadas com dinheiro público;

2. Nenhum candidato poderá ser favorecido com o dinheiro de empresários ou qualquer outro ente privado, “acabando teoricamente” de uma vez por todas com esquemas de caixa dois;

3. As instituições de fiscalização (Ministério Público, Polícia Federal, Justiça Eleitoral) atuariam no controle e efetivação das duas cláusulas primeiras.

Depois disso imagina-se que haveria um barateamento das campanhas eleitorais e uma disputa mais leal entre candidatos pobres e abastados. Outro argumento é que as mudanças tornariam mais fáceis a atuação dos órgãos de fiscalização, já que o controle dos recursos seria feito diretamente pelo Estado.

Isso aconteceria?

Respondo negativamente. As práticas permaneceriam as mesmas!

Então o que irá ocorrer?

1. Os postulantes a cargos públicos serão abastecidos com grandes cifrões. Dinheiro que poderia e deveria ser investido em saúde, educação, geração de empregos, e mais uma pilha de prioridades básicas. Não é difícil chegar à conclusão que o número de candidatos crescerá assustadoramente. Quem nunca fez nada nem deu a mínima à política, não perderá a chance de requerer seus “trocadinhos”.

2. Após receberem o dinheiro vindo dos cofres públicos os candidatos mais representativos não se contentarão e, às ocultas, receberão as verbas repassadas por empresários e demais entidades particulares. Como já é de práxis atualmente, o “segundo caixa” será mantido.

3. Como também é de costume, as instituições responsáveis pela fiscalização não darão conta do recado. Pois qual a diferença entre fazer isso agora, antes do financiamento público, e fazer posteriormente?

4. Em conseqüência as disparidades entre candidatos ricos e pobres continuarão as mesmas. O caixa dois realizado pelos de maior representação garantirá a perpetuação das desigualdades.

Enfim, apesar de haver um clima mais do que propício para a reformulação das práticas e dos procedimentos efetuados dentro da Democracia brasileira, há pouca vontade em pensar e concretizar decisões que eliminem a ultrapassada estrutura de poder de nossa República.

A emergência por soluções é visível, como também a constatação de que o financiamento público das campanhas jamais significará avanços nessa empreitada. O maior desafio, ao que parece, continua sendo acreditar que alguma coisa boa possa ser feita por esses homens que são, absolutamente, beneficiados com o atual caos político nacional.

Estado de Calamidade

Os números abaixo servem apenas para comprovar o caos provocado pela corrupção instaurada nas Instituições políticas brasileiras.

* A perda anual da economia brasileira com a corrupção fica entre 3% e 5% do PIB, de acordo com o IBGE. Cerca de R$ 76 bilhões;

* O Brasil ocupa o 62º lugar na escala de corrupção entre 146 países pesquisados;

* No país, a redução de apenas 10% no nível de corrupção aumentaria em 50% a renda per capita dos brasileiros num período de 25 anos;

* Na Paraíba, em um ano, os desvios de recursos públicos devem ultrapassar meio bilhão de reais;

* Segundo o Fórum Paraibano de Combate à Corrupção, cerca de 85% das denúncias são procedentes;


http://www.db.com.br/noticias/?69427

Sunday, December 10, 2006



















A desconfiança dos brasileiros
João Paulo Medeiros

Há tempos que o brasileiro deixou de depositar nos políticos a sua confiança. Uma pesquisa realizada por alunos da Universidade de Brasília (UNB) constatou que 90,1% dos brasileiros não acreditam mais na classe política do país.

Também não é para menos. A cada dia estouram escândalos e mais escândalos de corrupção encabeçados por deputados, senadores, prefeitos e demais ocupantes de cargos públicos.

O resultado desses golpes contra o Estado e o povo do Brasil são cifras infindáveis de dinheiro público jogados à sarjeta, em detrimento das condições mínimas de saúde, educação e todos os outros serviços indispensáveis ao bem-estar do brasileiro.

Somente com o “Esquema dos Sanguessugas”, desvendado este ano, 100 milhões de reais que deveriam servir para a compra de ambulâncias foram destinados ao financiamento das mordomias e campanhas eleitorais de deputados e senadores. Estima-se que a fraude contou com a participação de quase cem parlamentares, pertencentes a praticamente todos os partidos políticos.

Os sanguessugas são somados aos mensaleiros, anões, e outra centena de adjetivações próprias do abrangente “dicionário corrupto” que tomou conta do linguajar brasileiro. Sem computarmos ainda as incontáveis evidências que nem mesmo chegam a ser investigadas.

E o estudo dos alunos da UNB não é um caso isolado. Inúmeras sondagens atestam e até aprofundam os números comprobatórios da ausência de credibilidade pública da classe política nacional. Numa pesquisa nacional realizada pela revista "Seleções" e o Ibope em maio deste ano, avaliando a credibilidade das categorias profissionais, os homens da política amargaram o último e merecido posto com apenas 2% no índice de confiança da população.

Mas diante do mau exemplo daqueles encarregados de conduzirem os Poderes republicanos do país, surge uma série de inconveniências adicionais. A crise de confiança tem desencadeado a abnegação pela Política e demais assuntos relacionados à esfera pública. Em outras palavras, valores inquestionáveis como o amor ao País e a preocupação com a vida de seus conterrâneos, sedem espaço a uma avalanche de práticas mesquinhas e desleais; e com isso abrem terreno para a proliferação do famoso e repudiável “jeitinho brasileiro”.

A descrença poderia ser muito valorosa, desde que despertasse nos brasileiros o desejo audacioso por uma verdadeira alteração dos padrões e na conduta dos eleitos. Porém, percebe-se que ela acabou se transformando, unicamente, em ingrediente complementar da “massa”. E inchando, por conseguinte, o bolo de penúrias inaceitáveis da política brasileira.

Saturday, December 09, 2006


Orkut: o revelador

João Paulo Medeiros


O orkut todo mundo conhece. Mesmo quem nunca fez seu “perfil” ou passou horas estagnado em frente ao computador cureando sua “página e scrapps”, já viu ou ouviu falar no site de relacionamento mais badalado da internet. E não é para menos: estima-se que, somente no Brasil, 10 milhões de pessoas sejam usuárias do serviço.

Ao associar-se cada indivíduo torna-se criador e editor de sua própria página virtual. Ordena e classifica as fotografias a serem expostas; arquiteta frases, comentários e pensamentos de efeito, em descrições nem sempre plausíveis; distribui, recebe e encomenda falsos e verdadeiros convites de amizade. O site é uma psicose navegante .

Mas, ao contrário do que muitos pensam, a formatação e o conteúdo das páginas simbolizam bem mais do que um simples espaço feito para estreitar as relações humanas. Eles identificam o próprio dono. Publicitam como ele enxerga o mundo e sua participação no convívio com as outras pessoas. Revelam o caráter. O comportamento e o ideário dos usuários. Isso, certamente, pouca gente percebe.

Exemplo do fato é o interrogatório a respeito da visão política dos indivíduos. Respostas do tipo, “apolítico”, ajudam-nos a compreender porque a imoralidade e o fisiologismo político prosseguem gerindo os espaços públicos de representação da República brasileira. O termo “Política” é ao mesmo tempo tão próximo e alheio à grande parte dos eleitores. E se estes não possuem a capacidade de alinhar-se politicamente a uma ideologia, como poderão exigir que aqueles que os representam façam isso? Na prática, o troca-troca de siglas partidárias, o desprezo por programas de governo e pelos princípios ideológicos do regime democrático são algumas das características do Estado Brasileiro.

Para essas pessoas há apenas duas explicações: ou elas não existem, ou não têm a mínima noção do venha a ser “Política”. A possibilidade da inexistência está condicionada à máxima sentenciada por Aristóteles: o homem é um animal político no instante em que necessita se relacionar com os demais.

A assertiva do desconhecimento refere-se à atribuição leiga da “Política” associada à natureza eleitoral. Nesse caso, verifica-se que aqueles que afirmam ser desinteressados por política, votam e freqüentemente fazem campanha em períodos de eleição. E ainda que se abstivessem do voto, também dessa forma participariam do processo como não-votantes.

Na verdade a política – mesmo entendida unicamente como eleitoral – está longe de ser a “arte de transformar a vida das pessoas”, como exprimem demagogicamente muitos atores políticos contemporâneos. Mas certamente pode e deve ser entendida como uma disputa de poder; indispensável e indissociável ao desenvolvimento da vida em sociedade.

Aqueles que continuam se intitulando “apolíticos”, ainda que o façam em ambientes descontraídos como o orkut, reforçam e prolongam a indecência e o amadorismo governamentais reinantes em nosso país. O orkut precisa ser aproveitado como instrumento propagador de boas idéias, e a política entendida e tratada com seriedade.


Thursday, December 07, 2006

Paraíba de Fora

João Paulo Medeiros

A decisão sobre a obrigatoriedade ou não do diploma profissional de jornalista continua pendente. Depois de a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) ter pressionado o Tribunal Regional Federal a rever em outubro a determinação que dispensava a obrigatoriedade, o Supremo Tribunal Federal (STF) colocou novamente lenha na fogueira: instituiu na semana passada uma medida cautelar permitindo o exercício da profissão por pessoas não habilitadas que já possuíam o registro.

Mas os dois fatos tiveram para nós, jornalistas ou quase jornalistas paraibanos, duas facetas. Uma de causar encantamento, outra desoladora.

Primeira: A determinação do STF desembocou uma onda de protestos nunca vista antes. Profissionais saíram às ruas de Norte a Sul do país para demonstrarem a indignação da categoria frente à medida. Os Atos deixaram transparecer um sentimento de união, historicamente ausente da conduta dos jornalistas brasileiros.

Gaúchos levantaram um jornal enrolado como canudo, simbolizando um diploma universitário na abertura do II Encontro Estadual de Jornalistas em Assessoria de Comunicação; no Pará estudantes e profissionais de redações realizaram panfletagem nas ruas e na Câmara de vereadores de Belém; em 1º de dezembro jornalistas baianos deixaram suas atividades e manifestaram sua insatisfação em frente à OAB do Estado; semelhantes a eles, profissionais de Minas, Santa Catarina, cearenses paraenses e cariocas organizaram passeatas e manifestações em seus estados para também darem suas parcelas de contribuição na empreitada.

Segunda: Apesar de manter um dos pisos salariais mais decadentes do Brasil, e de ter com freqüência a liberdade condicionada ao extremo pela elite política e econômica do Estado, os jornalistas paraibanos permaneceram alheios à problemática. Não se viu ou ouviu nem mesmo uma nota a respeito do assunto.

Entidades representativas da categoria como a Associação Paraibana de Imprensa (API) e a Associação Campinense de Imprensa (ACI), coordenadores dos Centros Acadêmicos de Jornalismo e das Universidades de Comunicação do Estado não esbravejaram uma só palavra em repúdio à resolução tomada pelo STF.


Daí deduz-se. Num momento em as Instituições acadêmicas e o compromisso com a informação de qualidade se vêem ameaçadas, e que mesmo tardiamente os jornalistas do país decidem arregaçar as mangas para correrem atrás de seus direitos, o nosso Estado fica novamente fora do que acontece além de suas fronteiras. E, por conseqüência, muito provavelmente os profissionais daqui irão prosseguir amargando o descaso e a ignorância dos empresários do setor. Sofrendo os efeitos de um campo de trabalho estagnado e sem perspectivas.

Tuesday, December 05, 2006

SÍNDROME DAS MARIAS

João Paulo Medeiros


Havia mais de cinco meses que mantinha rigorosamente o mesmo suplício: logo depois do clarear do dia suco de três laranjas, sem açúcar, acompanhado de um ou dois pães integrais melados de manteiga de igual procedência. À tarde, alface, brócolis e arroz branco misturado com migalhas de carne de frango resseca pela nocividade do microondas. Por fim, sopa de legumes e verduras magras bem aquecida para amenizar o frio da noite e da barriga.

Em tempos de Fome Zero e Bolsa Família era privilegiada. Embora sentisse fome e de quando e vez escuridão na vista, comida e dinheiro não lhe faltavam. Na última visita que fizera ao médico, voltou para casa com os nervos à flor da pele quando este lhe disse que de nada adiantaria tanto esforço, porque provavelmente tratava-se de um problema genético – mais três quilos lhe foram acrescidos nas duas semanas anteriores.

“Mas como assim problema”, replicou enfurecida. Tudo o que fazia apenas não ajudaria a manter intacta sua estética de menina? Empurrava uma vida moldada por ilusões, hábitos e cláusulas por querer próprio.

Ao abrir a janela de seu quarto, ignorava com maestria os docinhos e salgados apetitosos da Padaria Onófrio, bem em frente a sua casa. Toda às tardes e noites servia-se do quarto enquanto pais e seus dois irmãos deliciavam-se do cardápio e da cozinha espaçosa. Dedicava horas e horas frente ao espelho registrando cada detalhe e mudanças ocorridas em seu corpo; dava especial atenção às pernas e quadris desengonçados e cheios de ossos, também olhava para a barriga volumosa, e não queria perceber que seus 70 quilos seguiam o padrão da riqueza nacional: abundantes e mal distribuídos em míseros 1.65m de altura. Jamais dispensava uma única oportunidade de verificar a eficiência de qualquer balança farmacêutica que encontrasse. Certas vezes receava a crueldade de alguns balconistas indiscretos, mas não resistia.

Numa dessas ocasiões, escutou de um deles: - Se balança falasse, essa aí já estaria aos gritos! O sangue torrou-lhe os juízos naquele instante. Sorte a dele que nenhum vasilhame de xarope havia por perto. Passada a raiva momentânea, pouco importava o que pensassem ou dissessem a seu respeito. Pois todo Narciso ama e cuida com zelo de sua beleza incontroversa. E mais ela, uma Maria brasileira... Filha do botox e do corretivo, escrava do desejo de prosseguir arranhando o céu da perfeição; ainda que o mundo e os números denunciem o contrário.

Dia desses, candidatou-se à garota carnaval...